
A rotina do juiz Orlando Faccini Neto, 45 anos, se alterou bastante nos últimos meses. Seus dias já atarefados pelas múltiplas funções que exerce ficaram ainda mais ocupados. Afinal, está diante de um do processo que precisa fazer justiça para 242 mortos e 636 feridos. Ele conduz uma das ações mais rumorosas da história do Judiciário gaúcho. O processo principal sobre a tragédia na boate Kiss, em Santa Maria, tem mais de 19 mil páginas, dezenas de apensos, centenas de objetos apreendidos ao longo de sua tramitação e inúmeras famílias com dor na alma de perder seus entes queridos.
Faccini Neto sabe da sua responsabilidade e está preparado para ela. É um juiz experiente, metódico, estudioso e rígido. Nascido em São Paulo, é formado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa (Portugal). A história de Faccini Neto na magistratura do Rio Grande do Sul começou no 11 de setembro de 2001, no mesmo dia do ataque terrorista ao World Trade Center, em Nova York. Aos 24 anos, ficou sabendo que seria juiz em solo gaúcho ao ver o Diário Oficial publicando o resultado do concurso que participou. Para realização das provas, que resultaram no triunfo, viajava 18 horas de ônibus entre São Paulo e Porto Alegre, já que na oportunidade não tinha dinheiro para passagens aéreas.
É magistrado por vocação. Estava na última fase do concurso do Ministério Público em São Paulo, mas não fez a prova ao saber que tinha passado no concurso para juiz. Deixou seu Estado natal e desde então vive no Rio Grande do Sul. Ainda em 2001, assumiu como titular da comarca de Jaguarão e, em 2004, a Vara Criminal de Carazinho. Em 2011, foi promovido para a comarca de Passo Fundo, também na área criminal. Aliás, foi em Passo Fundo que mandou prender, em 2014, o advogado Maurício Dal Agnol, condenado posteriormente por ficar com dinheiro de clientes em ações judiciais contra uma empresa de telefonia. Em 2016, se transferiu para Porto Alegre. Hoje, é titular do 2º Juizado da 1ª Vara do Júri.
— É um juiz preparado para esse processo — disse um dos operadores do Direito gaúcho ouvido por GZH.
Faccini Neto tem recebido apoio institucional do Tribunal de Justiça para conduzir a ação penal do Caso Kiss. Além disso, conta com servidores do Judiciário para que o processo tramite na forma mais célere possível. Lívia Fossatti, 33 anos, por exemplo, é fiel escudeira do magistrado. Servidora desde 2013, assessora o juiz desde 2015, quando ainda estava em Passo Fundo, com pequena interrupção nesse meio tempo, quando o juiz se afastou da jurisdição para ser vice-presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), entidade que hoje preside.
Aliás, não se tem notícias de algum presidente da entidade que tenha acumulado o cargo com a função de magistrado. Lívia conhece cada página do processo desde que a ação saiu de Santa Maria, onde tramitou por cerca de oito anos, e passou a tramitar em Porto Alegre. Dedicada, mantém o juiz informado a todo momento de todos os andamentos da ação, como petições que ingressam ou decisões de tribunais que chegam.
Nos últimos meses, o juiz tem evitado entrevistas. A única que concedeu recentemente foi uma coletiva ao lado do presidente do Conselho de Comunicação do Tribunal de Justiça, desembargador Antonio Vinicius Amaro da Silveira, no plenário escolhido para realização do júri dos quatro réus. Está se esforçando ao máximo para que o júri seja realizado.
— O júri precisa realizar-se — ressaltou o juiz durante sua manifestação na entrevista coletiva na quinta-feira (25).
Além de presidente da Ajuris, titular do 2º Juizado da 1ª Vara do Júri, Faccini Neto também é professor. A academia é uma das suas paixões no Direito. Gosta de ensinar. Com muitas das suas aulas online, senta em sua cadeira gamer comprada durante a pandemia e passa aos alunos todo o seu conhecimento em Direito Penal. É professor do mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), da Escola da Magistratura da Ajuris e do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O magistrado gosta da jurisdição e, justamente por isso, decidiu acumular o cargo de presidente da Ajuris com o de magistrado, o que causou celeuma entre alguns de seus colegas. Foi levado à vida associativa pelas circunstâncias e por ser conhecido de muitos magistrados, já que dá aulas, palestras e cursos de formação aos juízes praticamente desde que entrou na carreira.
É torcedor do Corinthians, mas “não praticante”. Desde cedo acompanha futebol à distância, mas sempre foi grande fã do Doutor Sócrates, que além de grande jogador, liderou a Democracia Corinthiana. Já o interesse pelo xadrez é intenso. Praticante da arte dos tabuleiros, assiste na internet a vídeos de antigas partidas entre grandes mestres e neste momento está acompanhando a disputa em Dubai do título mundial entre o atual campeão, o norueguês Magnus Carlsen, e o desafiante, o russo Ian Nepomniachtchi.
É um apreciador de música e literatura. Frequentemente, menos nos últimos meses, posta vídeos tocando e cantando clássicos do rock nacional e internacional em suas redes sociais. Reveza na utilização dos cinco violões que possui na sala de casa, também usada atualmente como “gabinete”.
A rotina diária conta com exercícios na academia, questões da Ajuris e despachos envolvendo o Caso Kiss. No final da tarde, dá aulas na UFRGS.
A família ainda mora em São Paulo, para onde viaja quando a agenda permite para rever a mãe, a avó e a irmã. É casado e não tem filho. Tem uma ampla biblioteca de livros técnicos da área jurídica, estrangeiros, de biografias e sobre temas atuais, além dos clássicos da literatura, que se espalham pela sua sala na Ajuris, seu gabinete no Foro Central de Porto Alegre e em um quarto de sua casa.
Em sua carreira, sempre se preocupou em aliar o denso conhecimento técnico que possui com o lado humanista, ampliando o universo de análise das questões que julga e considerando não apenas os aspectos formais, mas também os contextos cultural e filosófico que servem de pano de fundo para os acontecimentos.
Quando o processo chegou em seu juizado, depois de ser desaforado de Santa Maria, houve um ajuste com a Corregedoria-Geral de Justiça para que reassumisse a função (estava afastado por conta da presidência da Ajuris) e se dedicasse exclusivamente ao processo (os demais processos foram transferidos para responsabilidade de outro colega).
Faccini Neto é considerado pelos colegas e demais operadores do Direito como um juiz linha dura. Por vezes, aplica penas máximas em suas sentenças. Em 2018, por exemplo, no caso de uma menina de cinco anos vítima de estupro e assassinato, condenou o padrasto e o irmão de criação dele a 61 anos de prisão após 13 horas de julgamento.
A “mão pesada” também foi aplicada em sentença num caso ocorrido em Passo Fundo, quando um homem foi condenado por roubo e estupro de uma adolescente de 15 anos. Aplicando o máximo que a legislação permite para os dois crimes, condenou o réu a 27 anos de reclusão. Em Carazinho, deixou de reduzir a pena de um réu considerado semi-imputável por ter transtorno antissocial de personalidade. Fixou-a em 30 anos de prisão pelos crimes de roubo majorado pelo emprego de arma e extorsão mediante sequestro qualificado pela duração superior a 24 horas.
Em 2017, conduziu o júri do caso envolvendo o assassinato de um sem-terra em São Gabriel por um policial militar. Na oportunidade, o PM foi condenado a 12 anos de prisão.
Defensor da prisão após condenação em 2º instância, Faccini Neto atuou durante um período no gabinete do ministro Felix Fischer, do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, auxiliando em julgamentos de recursos de processos da Operação Lava-Jato.
É de se esperar durante o julgamento uma postura firme, de quem sabe ouvir, mas que não deixa os trabalhos perderem seu foco. A balança tatuada no antebraço direito do magistrado diz muito sobre isso, a necessidade de equilíbrio entre o certo e o errado. Na parte interna de um dos braços, um “O”, de Orlando Faccini Júnior, uma homenagem ao pai já falecido e sua maior referência.
Caberá aos sete jurados dizer se os réus Elissandro Callegaro Spohr, Mauro Londero Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão são culpados ou inocentes pelo homicídio de 242 pessoas e a tentativa de homicídio de 636, no caso das que sobreviveram. Mas caberá à Faccini Neto proferir a sentença. Ninguém sabe o que se passa na cabeça do magistrado. Mas uma coisa, por seu histórico profissional, parece certa: em caso de serem considerados culpados, as penas deverão ser altas. E mais. Se isso realmente ocorrer, os réus deverão sair presos do plenário.
Fonte: GZH