
O terceiro ouvido no julgamento da boate Kiss, em Porto Alegre, nesta terça-feira (7) foi o diretor do Departamento Administrativo do Corpo de Bombeiros Militar, Gerson da Rosa Pereira, de 56 anos. Indicado como testemunha do réu Elissandro Spohr, ele era chefe de Estado Maior dos bombeiros de Santa Maria na época da tragédia, e foi o primeiro condenado criminal pelo incêndio, por fraude processual, em 2015.
“Hoje passados oito anos, a gente fica com estresse pós-traumático, e a gente acaba perdendo muito a memória, situações que a gente não lembra mais”, contou em plenário, emocionado. Ele diz que não consegue lembrar de como era a boate, mas que recorda das situações que viveu no atendimento à ocorrência.https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
Ele descreveu como organizou a atuação dos bombeiros na noite da tragédia, que definiu como “sui generis, totalmente diferente daquilo que a gente se preparou tecnicamente”, disse.
O magistrado perguntou a Gérson sobre o processo, e ele considerou “ridículo” o indiciamento. Após abordar diversos assuntos, respondeu ao juiz.
“No dia seguinte [da tragédia], tive homenagem no Palácio Piratini do Tarso Genro [ex-governador do estado] e do secretário de Segurança. No outro dia, nós éramos facínoras”, disse.
Gerson explicou que foi condenado por assinar documentos nos quais incluía um cálculo populacional da boate de 691 pessoas e que teria sido adulterado. Ele também confirmou que a casa noturna estava com a licença de operação fora de validade.
“O alvará estava vencido. Em agosto de 2012 já tinha expirado”, disse. “Na época, não impedia de continuar operando. Tinha que entrar no Corpo de Bombeiros com pedido de renovação e os bombeiros iam para fazer a vistoria para ver se o projeto com a obra construída e projetada correspondiam um com outro e treinamento de pessoal. Mas nada obstruía que continuasse com as atividades”, acrescentou.
Depois, ao ser questionado pelo advogado de Kiko Spohr, proprietário da boate, ele reiterou que era crítico da decisão, mas que a boate operava de forma regular. “Pelo que exigia a norma, ela [Kiss] oferecia, de acordo com o alvará, e embora estivesse vencido, na época funcionava, não era proibido. Para aquela estrutura, para aquele alvará, ela oferecia as condições de segurança”, sublinhou.https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
O bombeiro pontuou diversas vezes ao longo do depoimento que os processos aos quais os bombeiros respondem e responderam não têm a ver com a questão operacional nem tampouco com o salvamento.
Ele apontou ao juiz que, à época, três hipóteses foram levantadas sobre as causas das mortes: carbonização, asfixia mecânica por esmagamento e asfixia tóxica. A última se confirmou como a principal.
Outros depoimentos
O primeiro depoimento a ser prestado nesta terça foi o do do ex-técnico de som da banda Gurizada Fandangueira, Venâncio da Silva Anschau, de 40 anos.
Questionado pelo juiz Orlando Faccini Neto se alguém havia alertado o público sobre o incêndio no palco, Venâncio contou que desligou o áudio do ao ver que o fogo tinha iniciado.
“Eu não tenho dimensão, não imagino o que esteja do que aconteceu e eu desligo os microfones. Eu desabilitei. Errei”, disse, chorando.
Durante a tarde, o júri foi retomado com depoimento da arquiteta Nívia Braido, que foi procurada pelo réu Kiko Spohr para alterações no interior da boate. Ela disse em plenário que alertou o proprietário sobre a necessidade de ter um responsável técnico para uma obra que foi realizada na boate.
O que disseram os sobreviventes
- Kátia: ‘comecei a gritar que não queria morrer’, diz ex-funcionária que teve corpo queimado
- Kelen: ‘última vez que corri foi para tentar me salvar’, diz sobrevivente que teve perna amputada
- Emanuel: ‘não soou alarme’, conta sobrevivente especialista em prevenção de incêndio
- Jéssica: ‘vi quando pegou a faísca’, conta sobrevivente que perdeu irmão
- Lucas: ‘eu desmaiei, fui muito pisoteado’, diz DJ da boate
- Érico: ‘ajudei até o final’, conta barman que ajudou no socorro às vítimas
- Maike: ‘parecia que estava respirando fogo’
- Cristiane: ‘aquilo era um filme de terror’
- Delvani: ‘fui caindo e me despedindo da minha família’
- Doralina: ‘lembro de muito grito, muita confusão’, diz ex-segurança
- Willian Renato: ‘Ele queria voltar’, diz sobrinho sobre Kiko Spohr
- Nathália: ‘fiquei preocupada com a gravidez’, relata esposa de Kiko sobre incêndio
O que disseram as testemunhas
- Engenheiro diz que sugestão de sócio para instalar espuma acústica era ‘leiga e ignorante’
- ‘Artefatos não podem ser usados em ambiente fechado’, diz gerente de loja
- Juiz transforma testemunha em informante após filha postar ‘apodreçam na cadeia’
- ‘Ele sofre por isso’, diz ex-patrão de vocalista da banda ouvido em audiência
- ‘Não era de costume informar as casas’, diz testemunha de defesa sobre o uso de fogos nos shows
- Testemunha é convertida em informante por responder a processo por falsidade ideológica ligado à boate
- Promotor de eventos: ‘Alguma coisa me tirou de lá’
- Irmão do vocalista da banda: ‘nós não quisemos matar ninguém’
- Técnico de som: ‘errei’, sobre desativar áudio do palco ao ver incêndio
Quem são os réus?
- Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, 38 anos, era um dos sócios da boate
- Mauro Lodeiro Hoffmann, 56 anos, era outro sócio da Boate Kiss
- Marcelo de Jesus dos Santos, 41 anos, músico da banda Gurizada Fandangueira
- Luciano Augusto Bonilha Leão, 44 anos, era produtor musical e auxiliar de palco da banda
Entenda o caso
Os quatro réus são julgados por 242 homicídios consumados e 636 tentativas (artigo 21 do Código Penal). Na denúncia, o Ministério Público havia incluído duas qualificadoras — por motivo torpe e com emprego de fogo —, que aumentariam a pena. Porém, a Justiça retirou essas qualificadoras e converteu para homicídios simples.
Para o MP-RS, Kiko e Mauro são responsáveis pelos crimes e assumiram o risco de matar por terem usado “em paredes e no teto da boate espuma altamente inflamável e sem indicação técnica de uso, contratando o show descrito, que sabiam incluir exibições com fogos de artifício, mantendo a casa noturna superlotada, sem condições de evacuação e segurança contra fatos dessa natureza, bem como equipe de funcionários sem treinamento obrigatório, além de prévia e genericamente ordenarem aos seguranças que impedissem a saída de pessoas do recinto sem pagamento das despesas de consumo na boate”.
Já Marcelo e Luciano foram apontados como responsáveis porque “adquiriram e acionaram fogos de artifício (…), que sabiam se destinar a uso em ambientes externos, e direcionaram este último, aceso, para o teto da boate, que distava poucos centímetros do artefato, dando início à queima do revestimento inflamável e saindo do local sem alertar o público sobre o fogo e a necessidade de evacuação, mesmo podendo fazê-lo, já que tinham acesso fácil ao sistema de som da boate”.
Fonte: G1